Thursday, December 13, 2012


Não tenho escrito e não tenho melhorado, daí o vazio deste blog. Há coisas (demais) para dizer, mas noutra altura, quando conseguir.

Sunday, August 12, 2012


O despertador acordou-me à uma da tarde. Configurei-o assim para que a medicação não me hibernasse até quando o sol já estivesse a desaparecer. Mas quando tocou disse a mim mesmo que não, que ainda não estava pronto para este dia. Desliguei-o e voltei a dormir. Acordei por volta das quatro da tarde, ainda não pronto para a realidade. Tenho medo de me levantar, medo de sair da cama. Não tenho coragem. Sinto que se puser um pé fora da cama, um pé no chão do quarto, este dia me vai esmagar. Não tenho estrutura para suportar essa pressão, e tenho medo de tentar. Não me quero arrastar pelo chão de outro dia a tentar escapar aos pensamentos e à vontade de desistir. Fico na cama e tento desesperadamente dormir. Fecho os olhos e espero pela sensação de me descolar da consciência em que observo os meus pensamentos a transformarem-se em coisas ridículas e sem sentido. Espero por esse momento em que vejo o mundo a afastar-se à medida que eu recuo para o limbo do sono. Quando esse momento não chega tento enganar-me a mim próprio. Tento simulá-lo, como quem diz à própria mente “Olha, é assim que se faz”, porque talvez se eu lhe der um empurrão ela chegue lá sozinha. Talvez se eu arrancar a minha mente a empurrão.
Porque tenho medo de estar acordado, de abrir os olhos e estar frente a frente com a vida, com o tempo, com a estagnação e o vazio, e comigo. Com o que sou e o que não sou, e o que prevejo nunca conseguir ser.
O meu cobertor protege-me. Puxo-o até aos ombros, e é como se nada me pudesse alcançar. As desilusões, os falhanços, as oportunidades, a sabotagem, o medo, o medo, o medo, está tudo lá fora parado à espera. Nada se mexe, tudo espera por mim assim imóvel, pelo momento em que saia da cama e pense que sou capaz de enfrentar a vida. Talvez se ficar aqui para sempre. Talvez se nunca sair e deixar tudo apodrecer, todos os prazos passarem, todas as rendas por pagar, todos os telefonemas por atender. Se deixar o mundo seguir e eu ficar aqui – e então? Que mal pode acontecer? Se nunca enfrentar nada. As coisas que esperem, que esperem por mim eternamente, que esperem que eu ganhe a coragem que não quero sequer ter mais. Que esperem, que eu fico aqui. Que esperem sentadas. Estou na cama. Estou protegido. Não quero sair daqui nunca.

8 Junho 2012

Sunday, June 3, 2012


Exercício de escrever, porque sim (no qual não tenho tema para escrever mas escrevo na mesma): #1

Esta chuva fina que parece fazer parte do ar. É daqui, esta chuva, é este sítio e as memórias que dele tenho. Pisos molhados e casas repetidas na forma e nas paredes húmidas.
Este momento, agora, é de um domingo cedo e fresco, madrugada. Emborco cafeína de todas as formas a que tenho acesso – bebidas energéticas, um café (para já só um). Paro e olho para todas as montras por onde passo. Lojas de antiguidades, interesso-me pelo que vendem. Take away indiano, paro e observo os preços como se alguma vez lá fosse buscar comida. Um cabeleireiro, onde sei agora o preço de um corte para mulher. Tudo fechado, ainda. A cidade ainda não é. Não nestas horas azuis, cedíssimas, de um domingo. Aos poucos a cidade vai despejar-se pelas estradas – os carros pelos veios principais e as pessoas pelas ruas apertadas da baixa. Aos poucos tudo se vai brotando para as ruas, das portas, certamente, mas parecendo que surgem de lado nenhum. De um fim de uma rua longa que se perde numa neblina distante de onde as pessoas nascem e caminham em direcção a mim, passam por mim em direcção ao infinito onde se desfazem outra vez no meu esquecimento.
As lojas que cá deixo. Ode sempre quis comprar isto e aquilo, coisas para um futuro que é só da boca para fora, um futuro em que a minha vida é melhor. Mentiras que a minha mente às vezes consegue pregar-me. Mas as lojas que cá deixo, as coisas que sempre um dia ainda havia de comprar. As coisas que cá deixo. A diversidade que um dia foi nova, que se amplia agora mais uma vez, agora que deixo para trás todas as pequenas coisas giras que nunca comprei. Quero correr todas as lojas da baixa e comprar tudo o que quiser. Levar comigo as coisas engraçadas daqui, as coisas que um dia me imaginei usar com gargalhadas. Quero abusar do meu cartão, passa-lo de mão em mão em cada loja que só tenho aqui, para levar comigo para todo o lado o que esta cidade é. Vou ter saudades. Ainda hei-de chorar esta cidade, deixá-la para trás como ver alguém que se vai tornando cada vez mais pequeno com a distância, e como todos os alguéns que um dia deixei para trás – permanente ou temporariamente, mas sempre com a dor da saudade que chega antecipada – não me vou saber despedir. Ainda hei-de sair daqui com esta cidade tatuada na memória, arrependido por não a levar comigo nas milhentas coisas que nunca comprei.
Tenho fotografias que cheguem para vestir qualquer parede, mas parece que estou destinado à nudez dos quartos. E invejo todos aqueles que se imprimem nos sítios e os tomam e os mudam, submetem-nos a quem são e ao facto de ali estarem. Impõem-se nas paredes e nos móveis como quem se anuncia com um forte “Estou aqui. És meu”. Porque eu vivo sempre num submundo, mergulhado num livro ou num computador, numa realidade que não é real – filosofia à parte por um momento, que quero acabar isto hoje – e os quartos e os sítios nunca são meus porque nunca lá estou. E o quarto que aqui deixo é mais um no qual não me expandi até lhe alargar as paredes para me acomodar, até o deformar para que quem entre saiba que algures eu existo, realmente existo, nesta realidade que é realmente real (não quero saber se a aliteração é foleira ou não). Afinal, seguindo os vestígios que deixei nos meus quartos desta cidade, ou as marcas ou provas de mim mesmo, quase não se retira a conclusão de que realmente aqui existi.
Vou chorar esta cidade, quando a memória dela me apanhar um dia com a guarda em baixo e desprevenido, mas esta cidade não vai chorar por mim. Vou dizer-lhe “Adeus” e ela vai responder-me “Está bem”. Vou dizer-lhe “Vou lembrar-me de ti, ter saudades, olhar para fotografias tuas e sentir uma coisa cá dentro, um aperto estranho no abdómen e um peso nos ombros” e a cidade vai responder-me “Ok”. Um dia vou apanhar um comboio que será o último, e verei a cidade encolher até ao início de eu nunca mais a ver. A partir desse momento fica o medo constante das memórias se esborratarem, se confundirem e descolorarem, a ansiedade de saber que a cada dia que passa o tempo me rouba estas imagens que hoje quero guardar para sempre. “Pára, tempo! Pára! Pára!” quero gritar e implorar. Pedir-lhe que por favor não me apague as memórias desta cidade. Mas uma vez apagadas já nem saberei pelo que estou a lutar. Nem saberei que o tempo está a roubar-me parágrafos inteiros da prosa que é o meu passado. Nunca houve maior vilão que o tempo – o seu silêncio furtivo, infabilidade, implacabilidade, derrotando-nos todos os dias, como um inimigo perfeito.
Vou ter saudades desta cidade. Tenho-lhe as feições bem fotografadas. Vou olhá-las de tempos a tempos e deixar que me impactem e me perturbem.

Monday, May 28, 2012


Há cerca de oito anos atrás, mais um ou menos um ano, estive sentado numa sala com cinco pessoas à noite, um convívio comum. Idade média vinte e poucos neste grupo. Deve ter-se discutido o presente e o futuro, a vida e coisas dessas. Porque a certo momento alguém fez a ronda a todos nós pedindo-nos para nomear aquilo para o qual vivíamos. O que nos fazia sair da cama de manhã. Lembro-me da resposta de uma pessoa apenas, possivelmente a única que tinha uma resposta, que tinha a organização mental que permita que se saiba uma coisa destas. A resposta foi sólida e dita com convicção. O que tirava esta pessoa da cama pela manhã era a carreira e as pessoas que ama.
Pouco depois chegou a minha vez. “O que é que te tira da cama de manhã?”. Sou um palhaço em público e respondi “O despertador?” e apercebi-me imediatamente de que apesar dos risos que tinha provocado nos outros, a resposta não se encontrava muito longe da verdade. Tentei acrescentar algo, mas o que disse foi que ao acordar simplesmente fazia aquilo que é suposto fazer-se, que percorria os caminhos que outros caminharam e que deixaram marcados no mato. Ter emprego, avançar de ano para ano, adquirir coisas como uma casa e um carro.
Cerca de oito anos depois reparo que a minha resposta não mudou. O que é que me tira da cama pela manhã? Na verdade nunca quero sair da cama. O que me tira da cama continua a ser o compromisso com um outro que não quero, por respeito, deixar de cumprir. Ou o trabalho, que está acima da minha depressão e de tudo o que sou eu – trabalho é para ser cumprido. Nunca saio da cama por mim mesmo. Apercebo-me agora que para ser mais claro devia ter acrescentado que se não morresse à fome, não sairia da cama nunca. Para quê?
Parece que, no mínimo, saio da cama porque se não sair, morro. Saio da cama de manhã para me alimentar. Às vezes através do trabalho, de onde vem o dinheiro com o qual me alimento, às vezes directamente, para ir à cozinha e comer. Quando vou comer. Às vezes nem isso me tira da cama.

Wednesday, May 23, 2012

Dois sonhos


Sonhei nas últimas duas noites que estava com pessoas que não vejo há dez ou mais anos. Conhecimentos dos meus tempos da escola secundária com quem naturalmente perdi contacto, mas com quem vivi momentos (com alguns mais momentos do que com outros) entre o agradável e honestamente bons. Os sonhos tomam lugar nesses dias de há uma década atrás, as pessoas estão iguais e somos todos os miúdos que éramos. Mas falamos como falaríamos agora, desaparecidos e desligados uns dos outros pela mudança dos tempos e dos lugares. Dizemos coisas como “Há quanto tempo!” e trocamos apertos de mão e abraços sentidos. Despedimo-nos com sorrisos na cara como quem gostou do encontro, como quem ainda se lembra dos tais momentos bons vividos em conjunto, tenham sido eles poucos ou muitos.
Há duas noites sonhei com uma grande amiga minha cuja proximidade que povoou os nossos dias na escola secundária me ficou para sempre na memória. Chamemos-lhe S. Por via de amigos que tenho em Portugal, tinha espreitado já o perfil dela na rede social da moda. E quanto ela estava diferente… inacreditavelmente diferente, sem entrar em detalhes. Levei a mão à minha boca aberta, o meu queixo caído de incredulidade, e exclamei uns “Oh meu Deus”, blasfémias contra o meu ateísmo – isto era o quanto ela estava diferente. Não de uma maneira má, não por se ter tornado outra coisa, apenas fisicamente diferente. Não queria acreditar que era a mesma miúda envergonhada e inteligente que conheci nos últimos anos da minha adolescência.
Continuámos a navegar o perfil dela. Fotografias de férias felizes, fotografias em família que emitiam amor e carinho, e um álbum inteiro dedicado ao filho. Um filho… S. com um filho que sei agora que foi “fruto de uma relação anterior” (nas palavras dela). Apesar de tudo, achei-a feliz e senti-me feliz por ela. Muito feliz, por saber que enquanto a minha vida interior deu as curvas que deu e se afundou o quanto se afundou, pelo menos uma das pessoas de quem mantenho uma memória clara de grande amizade e confiança partiu para uma vida que talvez tenha tido os seus momentos baixos, mas no gráfico geral desta década a média parecia claramente positiva. Quis escrever-lhe. Eu e os meus amigos estávamos levemente afectados por algumas substâncias que tínhamos levado para a praia nessa noite, e não sendo eles estranhos à afeição que tive (e tenho) por esta pessoa, confiei-lhes que gostava de lhe dizer sem qualquer compromisso que estava feliz por ela. Que após uma década, vê-la feliz fez-me suspirar de alívio.
Tudo isto se passou em Dezembro. Mantive esta ideia de que lhe devia escrever, ideia que voltou a saltar na minha mente aqui e ali nos meses que se passaram. E há duas noites sonhei que estávamos outra vez no secundário, e o sorriso dela estava igual. Igualmente envergonhado, reservado, mas como quem guarda alguma coisa por dentro que vale a pena trabalhar para conhecer. De onde veio esta memória tão clara desta pessoa confesso não saber. Esquece-se muita gente ao longo de uma década e as caras, ainda mais as expressões, tornam-se difusas. Mas esta era uma memória clara como um desenho de traço fino, seguro e detalhado. Decidi escrever-lhe. Pela rede social da moda, claro, não tendo outra maneira de a contactar. Disse-lhe aquilo que lhe disse aqui: que fiquei contente com o que vi, com a felicidade que parecia ter encontrado. Que me esqueci de muitas pessoas mas a memória dela era clara, e que a sua felicidade de algum modo era importante para mim apesar da década que podia ter erodido a sua significância.
Recebi uma resposta no dia seguinte. Não interessa para onde isto vai agora. Se vamos comunicar frequentemente ou não, ou se um dia nos encontramos para histórias contadas por cima de um café ou qualquer coisa. É-me indiferente. Quis dizer-lhe que fiquei feliz por ela e tive essa oportunidade, e espero honestamente que seja feliz na próxima década também, e daí em diante. Será, portanto, que foi por mim que a contactei? Não consigo evitar a questão (porque temo sempre que me projecte em tudo o que faço) mas não sei se interessa. O sentimento por detrás da primeira mensagem, esse pelo menos era genuíno.
No segundo sonho, que tive nesta noite que passou, do qual acordei às cinco e meia da manhã sem conseguir retomar o sono, estava na piscina municipal que fica imediatamente ao lado da minha escola secundária. Penso que tinha ido buscar a minha irmã mais nova que lá praticou durante muitos anos da sua infância. A primeira pessoa que encontrei, chamemos-lhe J. era também uma amiga cuja relação de confiança era algo desequilibrada, no sentido em que ela confiava muito em mim e eu não confiava realmente nela. Mas neste cenário, na pequena vila de há dez anos atrás, trocámos Olás entusiastas e tivemos a conversa típica de quem não se vê há imenso tempo. Demos as mãos num acto de despedida e dei por mim a não querer largar à medida que ela se afastava de mim em passos lentos, andando já de lado a meio de virar finalmente as costas. Dei por mim a sentir aqueles últimos momentos em que ainda tinha a mão dela na minha, depois só os dedos, as pontas dos dedos, até não ter nada e o meu braço estar ainda esticado agarrando o nada na esperança de estender no tempo aquele conforto sensorial da mão do outro.
Fora do complexo das piscinas encontro outra cara desses tempos abandonados. Chamemos-lhe P. Um tipo sempre bem-disposto. Quis perguntar-lhe se ainda tocava naquela banda de percussão mas não tive tempo, a nossa troca de questões e respostas era animada, entusiasmada, acelerada. Disse-lhe que vivia no estrangeiro agora e ele disse-me que um dia me viria visitar. Respondi que viesse, que viesse mesmo, que o hospedaria, que tinha casa para ele, que teríamos que partilhar o quarto mas tenho dois colchões, podemos por um em cima do outro quando acordamos e não há problema de espaço. Confirmei-lhe que viesse, que viesse mesmo. Despedimo-nos.
Acordei, cinco e trinta e cinco da manhã, mas o meu relógio tem uns minutos a mais para me dar a ilusão que vou chegar aos sítios com antecedência. A luz já tinha acabado de se instalar lá fora e decidi começar o dia, bem-disposto pelas horas que não perdi acordando tardíssimo. Hoje tenho aqui já mais de mil palavras, mas não sei como categoriza-las. Estou a escrever sobre escrever? Não. Estou a escrever sobre depressão? Sobre melhorar? Talvez. Estou a escrever sobre saudade, sobre nostalgia e estar ligado a memórias de tempos em que não estava tão só, tempos em que as pessoas me rodeavam e estava no meio de uma rede de ligações e afectos. Estou a escrever, talvez não sobre melhorar, mas sobre uma maneira de estar melhor.

Obrigado Kainever


Estou a tomar um comprimido todas as noites chamado Kainever. Nome do composto em si, estazolam. Suposto curar insónia. São seis e meia da manhã e não se pode dizer que acordei cedo, mas que acordei cedo demais, às cinco e meia, quatro horas e meia depois de adormecer. Foi uma decisão difícil a de me levantar e pegar no computador para vir escrever. Tive que atravessar o quarto e as minha pernas estão mortas – a palavra que os escritores usam sempre é “torpor” e é exactamente o que é. É o Kainever, e eu sei, que me amolece os músculos e sempre que acordo a gravidade duplicou, sair da cama é duplamente complicado e sinto que vou desfalecer no chão do quarto sempre que acordo e preciso de me levantar. Kainever, devias estar a funcionar. Há cerca de duas semanas que não tenho uma noite bem dormida. Durmo demais e nessas demasiadas horas em que durmo, durmo de menos. Acordo de duas em duas horas porque os sonhos que tenho são demasiado absurdos, ao ponto em que desenvolvi a capacidade de me aperceber, durante o sonho, do ridículo das situações em que me encontro. Às vezes é o absurdo que me alerta para que estou provavelmente a sonhar, às vezes é o facto de estar tudo a correr tão mal e eu estar em tal pânico que tenho simplesmente esperança de que esteja deitado no meu quarto. De qualquer forma, aprendi a dizer-me a mim mesmo em sonho que “Espera, isto é bem capaz de ser um sonho” e abrir os olhos para ver o tecto do meu quarto, para sentir a cama debaixo de mim, o edredão por cima, e sentir a tensão aliviar outra vez até aos níveis normais. Kainever, o que é que estás a fazer? Após quatro horas disto o normal é não conseguir dormir mais. Sei-o quando acordo, imediatamente, que me esperam horas a rebolar na cama a perguntar ao ar porque raio é que não adormeço. Porque quando se acorda a meio da noite, se é para voltar a dormir, é em meio minuto – nunca realmente se acorda e muitas vezes é um companheiro que nos diz “Não te lembras de acordar a meio da noite? Até falaste comigo” e maior parte das vezes não nos lembramos. Mas eu acordo com uma tonelada de consciência largada em cima da cabeça, uma tonelada de alerta e já está, olho para o relógio e sinto-me imediatamente demasiado eu, demasiado real, para voltar a dormir. Um dia uma amiga disse-me que durante todo o dia, a qualquer hora, conseguia manter três níveis de pensamento constantes e sem problema, que pensava em três coisas ao mesmo tempo. Três camadas. Também me disse recentemente, quando numa despedida online lhe desejei que dormisse bem, que “durmo sempre bem”. Pois eu, que concentro todo o meu pensamento numa camada só, chegando estes momentos em que quero voltar a adormecer, dou por mim a pensar em dormir, a pensar em escrever, a entoar repetidamente uma canção qualquer, tudo ao mesmo tempo e, como os escritores dizem sempre, a uma velocidade “vertiginosa” – lamento, não estou para procurar palavras neste momento, não às seis e quarenta e cinco da manhã quando o meu corpo parece que ainda dorme mas eu não. Obrigado Kainever.

Thursday, January 5, 2012

No dia em que escrevi o primeiro capítulo do livro em que estou a trabalhar, para me despejar, porque estava inundado, escrevi o seguinte:


Eu escrevo. Sento-me e as minhas mãos estão o mais próximo possível do teclado sem o tocar, flutuando um pouco, como um primeiro beijo. Estou parado, músculos até um pouco tensos, se tempo e movimento são a mesma coisa então é como se tivesse parado o tempo, olhos fixos na página virtual. É um deserto, para atravessar contra o vento. É uma batalha, escrever, e uma floresta densa por perfurar, um rio no qual remar contra a corrente. Estou imóvel bombeando electricidade para a frente e para trás através da minha rede neuronal, trabalho silencioso, sob a aparência de um autómato desligado. Mas a erupção é instantânea e sem tremores que a antecedam, é um estalo ensurdecedor, uma faca vinda não sei de onde que viola o lençol de silêncio, uma agulha e um balão; dispara o meu cérebro a ordem e os meus dedos caiem sobre as teclas, é um ataque, é um massacre. As palavras aparecem sob o som ininterrupto das teclas a morrerem em combate, a página é a praia onde o sangue fica e escorre com a água e se escreve história. Erupção a erupção, sempre rápidas e urgentes, assim o texto se forma, uma serpente de palavras invocadas de outra dimensão e fixadas à força na nossa realidade, avançando, vertendo-se sobre as páginas.
Eu escrevo. Uma história desta vez, com capítulos e personagens e coisas que acontecem, e tudo. Espalha-se em palavras aos milhares, e deita-se ao longo dos dias e das semanas. Dá-me medo, o medo da responsabilidade, que vem com o poder, e escrever é um poder imenso. Vejo na distância o fim de um capítulo, vou acrescentando palavras e depositando a história organizadamente ao longo das linhas à medida que esse fim ganha forma. Sei o que tem que vir antes que ele chegue, sei o que tenho que deixar para depois. Quero uma frase que encerre o capítulo, que ressoe na mente quando a página estiver só meia preenchida e a página seguinte terá um título, um convite a respirar, a engolir o que entretanto foi ingerido. Vejo-o aproximar-se como alguém caminhando numa estrada, o calor ondulando a realidade, e sei que o encontro é inevitável. Fim de capítulo, convite a uma pausa, estancar o fluxo, virar as costas, completude da produção, um artefacto completo. Empurro a história até onde o fim de capítulo possa aterrar pacificamente, a última frase, a que ecoa no leitor enquanto ele vira a página para a secção seguinte, surge naturalmente e apresenta-se-me, eu aprovo. Ponto final. Capítulo encerrado. Satisfatório.

Mãos afastam-se do teclado. Estou nervoso, coração acelerado, desactivei uma bomba no último segundo e a adrenalina ainda está perdida nas minhas veias. O capítulo que encerro é agora um artefacto complexo de vidro, é frágil e tenho medo de o deixar cair. Tenho medo de deixar as mãos flutuar sobre o teclado uma vez mais, tão próximas das teclas que sinto o calor da maquinaria onde escrevo; tenho acima de tudo medo de acrescentar uma palavra que seja. Está feito. Viro as costas, concedo-me o tempo para desperdiçar em qualquer outra coisa, sinto-me bem. Atrás de mim o capítulo ainda transpira. A serpente de palavras é um demónio. Espero que tudo arrefeça e se silencie, e assim se torne o que é. O capítulo fixando-se na realidade – está encerrado, está escrito. Mas até lá sinto a sua presença, um murmúrio, “capítulo, capítulo, capítulo”, pergunto-me se conseguirei adormecer de todo hoje. O quarto, ou eu próprio, um de nós está assombrado agora.

Hoje terminei o quinto capítulo. Sinto exactamente o mesmo.