Monday, May 28, 2012


Há cerca de oito anos atrás, mais um ou menos um ano, estive sentado numa sala com cinco pessoas à noite, um convívio comum. Idade média vinte e poucos neste grupo. Deve ter-se discutido o presente e o futuro, a vida e coisas dessas. Porque a certo momento alguém fez a ronda a todos nós pedindo-nos para nomear aquilo para o qual vivíamos. O que nos fazia sair da cama de manhã. Lembro-me da resposta de uma pessoa apenas, possivelmente a única que tinha uma resposta, que tinha a organização mental que permita que se saiba uma coisa destas. A resposta foi sólida e dita com convicção. O que tirava esta pessoa da cama pela manhã era a carreira e as pessoas que ama.
Pouco depois chegou a minha vez. “O que é que te tira da cama de manhã?”. Sou um palhaço em público e respondi “O despertador?” e apercebi-me imediatamente de que apesar dos risos que tinha provocado nos outros, a resposta não se encontrava muito longe da verdade. Tentei acrescentar algo, mas o que disse foi que ao acordar simplesmente fazia aquilo que é suposto fazer-se, que percorria os caminhos que outros caminharam e que deixaram marcados no mato. Ter emprego, avançar de ano para ano, adquirir coisas como uma casa e um carro.
Cerca de oito anos depois reparo que a minha resposta não mudou. O que é que me tira da cama pela manhã? Na verdade nunca quero sair da cama. O que me tira da cama continua a ser o compromisso com um outro que não quero, por respeito, deixar de cumprir. Ou o trabalho, que está acima da minha depressão e de tudo o que sou eu – trabalho é para ser cumprido. Nunca saio da cama por mim mesmo. Apercebo-me agora que para ser mais claro devia ter acrescentado que se não morresse à fome, não sairia da cama nunca. Para quê?
Parece que, no mínimo, saio da cama porque se não sair, morro. Saio da cama de manhã para me alimentar. Às vezes através do trabalho, de onde vem o dinheiro com o qual me alimento, às vezes directamente, para ir à cozinha e comer. Quando vou comer. Às vezes nem isso me tira da cama.

Wednesday, May 23, 2012

Dois sonhos


Sonhei nas últimas duas noites que estava com pessoas que não vejo há dez ou mais anos. Conhecimentos dos meus tempos da escola secundária com quem naturalmente perdi contacto, mas com quem vivi momentos (com alguns mais momentos do que com outros) entre o agradável e honestamente bons. Os sonhos tomam lugar nesses dias de há uma década atrás, as pessoas estão iguais e somos todos os miúdos que éramos. Mas falamos como falaríamos agora, desaparecidos e desligados uns dos outros pela mudança dos tempos e dos lugares. Dizemos coisas como “Há quanto tempo!” e trocamos apertos de mão e abraços sentidos. Despedimo-nos com sorrisos na cara como quem gostou do encontro, como quem ainda se lembra dos tais momentos bons vividos em conjunto, tenham sido eles poucos ou muitos.
Há duas noites sonhei com uma grande amiga minha cuja proximidade que povoou os nossos dias na escola secundária me ficou para sempre na memória. Chamemos-lhe S. Por via de amigos que tenho em Portugal, tinha espreitado já o perfil dela na rede social da moda. E quanto ela estava diferente… inacreditavelmente diferente, sem entrar em detalhes. Levei a mão à minha boca aberta, o meu queixo caído de incredulidade, e exclamei uns “Oh meu Deus”, blasfémias contra o meu ateísmo – isto era o quanto ela estava diferente. Não de uma maneira má, não por se ter tornado outra coisa, apenas fisicamente diferente. Não queria acreditar que era a mesma miúda envergonhada e inteligente que conheci nos últimos anos da minha adolescência.
Continuámos a navegar o perfil dela. Fotografias de férias felizes, fotografias em família que emitiam amor e carinho, e um álbum inteiro dedicado ao filho. Um filho… S. com um filho que sei agora que foi “fruto de uma relação anterior” (nas palavras dela). Apesar de tudo, achei-a feliz e senti-me feliz por ela. Muito feliz, por saber que enquanto a minha vida interior deu as curvas que deu e se afundou o quanto se afundou, pelo menos uma das pessoas de quem mantenho uma memória clara de grande amizade e confiança partiu para uma vida que talvez tenha tido os seus momentos baixos, mas no gráfico geral desta década a média parecia claramente positiva. Quis escrever-lhe. Eu e os meus amigos estávamos levemente afectados por algumas substâncias que tínhamos levado para a praia nessa noite, e não sendo eles estranhos à afeição que tive (e tenho) por esta pessoa, confiei-lhes que gostava de lhe dizer sem qualquer compromisso que estava feliz por ela. Que após uma década, vê-la feliz fez-me suspirar de alívio.
Tudo isto se passou em Dezembro. Mantive esta ideia de que lhe devia escrever, ideia que voltou a saltar na minha mente aqui e ali nos meses que se passaram. E há duas noites sonhei que estávamos outra vez no secundário, e o sorriso dela estava igual. Igualmente envergonhado, reservado, mas como quem guarda alguma coisa por dentro que vale a pena trabalhar para conhecer. De onde veio esta memória tão clara desta pessoa confesso não saber. Esquece-se muita gente ao longo de uma década e as caras, ainda mais as expressões, tornam-se difusas. Mas esta era uma memória clara como um desenho de traço fino, seguro e detalhado. Decidi escrever-lhe. Pela rede social da moda, claro, não tendo outra maneira de a contactar. Disse-lhe aquilo que lhe disse aqui: que fiquei contente com o que vi, com a felicidade que parecia ter encontrado. Que me esqueci de muitas pessoas mas a memória dela era clara, e que a sua felicidade de algum modo era importante para mim apesar da década que podia ter erodido a sua significância.
Recebi uma resposta no dia seguinte. Não interessa para onde isto vai agora. Se vamos comunicar frequentemente ou não, ou se um dia nos encontramos para histórias contadas por cima de um café ou qualquer coisa. É-me indiferente. Quis dizer-lhe que fiquei feliz por ela e tive essa oportunidade, e espero honestamente que seja feliz na próxima década também, e daí em diante. Será, portanto, que foi por mim que a contactei? Não consigo evitar a questão (porque temo sempre que me projecte em tudo o que faço) mas não sei se interessa. O sentimento por detrás da primeira mensagem, esse pelo menos era genuíno.
No segundo sonho, que tive nesta noite que passou, do qual acordei às cinco e meia da manhã sem conseguir retomar o sono, estava na piscina municipal que fica imediatamente ao lado da minha escola secundária. Penso que tinha ido buscar a minha irmã mais nova que lá praticou durante muitos anos da sua infância. A primeira pessoa que encontrei, chamemos-lhe J. era também uma amiga cuja relação de confiança era algo desequilibrada, no sentido em que ela confiava muito em mim e eu não confiava realmente nela. Mas neste cenário, na pequena vila de há dez anos atrás, trocámos Olás entusiastas e tivemos a conversa típica de quem não se vê há imenso tempo. Demos as mãos num acto de despedida e dei por mim a não querer largar à medida que ela se afastava de mim em passos lentos, andando já de lado a meio de virar finalmente as costas. Dei por mim a sentir aqueles últimos momentos em que ainda tinha a mão dela na minha, depois só os dedos, as pontas dos dedos, até não ter nada e o meu braço estar ainda esticado agarrando o nada na esperança de estender no tempo aquele conforto sensorial da mão do outro.
Fora do complexo das piscinas encontro outra cara desses tempos abandonados. Chamemos-lhe P. Um tipo sempre bem-disposto. Quis perguntar-lhe se ainda tocava naquela banda de percussão mas não tive tempo, a nossa troca de questões e respostas era animada, entusiasmada, acelerada. Disse-lhe que vivia no estrangeiro agora e ele disse-me que um dia me viria visitar. Respondi que viesse, que viesse mesmo, que o hospedaria, que tinha casa para ele, que teríamos que partilhar o quarto mas tenho dois colchões, podemos por um em cima do outro quando acordamos e não há problema de espaço. Confirmei-lhe que viesse, que viesse mesmo. Despedimo-nos.
Acordei, cinco e trinta e cinco da manhã, mas o meu relógio tem uns minutos a mais para me dar a ilusão que vou chegar aos sítios com antecedência. A luz já tinha acabado de se instalar lá fora e decidi começar o dia, bem-disposto pelas horas que não perdi acordando tardíssimo. Hoje tenho aqui já mais de mil palavras, mas não sei como categoriza-las. Estou a escrever sobre escrever? Não. Estou a escrever sobre depressão? Sobre melhorar? Talvez. Estou a escrever sobre saudade, sobre nostalgia e estar ligado a memórias de tempos em que não estava tão só, tempos em que as pessoas me rodeavam e estava no meio de uma rede de ligações e afectos. Estou a escrever, talvez não sobre melhorar, mas sobre uma maneira de estar melhor.

Obrigado Kainever


Estou a tomar um comprimido todas as noites chamado Kainever. Nome do composto em si, estazolam. Suposto curar insónia. São seis e meia da manhã e não se pode dizer que acordei cedo, mas que acordei cedo demais, às cinco e meia, quatro horas e meia depois de adormecer. Foi uma decisão difícil a de me levantar e pegar no computador para vir escrever. Tive que atravessar o quarto e as minha pernas estão mortas – a palavra que os escritores usam sempre é “torpor” e é exactamente o que é. É o Kainever, e eu sei, que me amolece os músculos e sempre que acordo a gravidade duplicou, sair da cama é duplamente complicado e sinto que vou desfalecer no chão do quarto sempre que acordo e preciso de me levantar. Kainever, devias estar a funcionar. Há cerca de duas semanas que não tenho uma noite bem dormida. Durmo demais e nessas demasiadas horas em que durmo, durmo de menos. Acordo de duas em duas horas porque os sonhos que tenho são demasiado absurdos, ao ponto em que desenvolvi a capacidade de me aperceber, durante o sonho, do ridículo das situações em que me encontro. Às vezes é o absurdo que me alerta para que estou provavelmente a sonhar, às vezes é o facto de estar tudo a correr tão mal e eu estar em tal pânico que tenho simplesmente esperança de que esteja deitado no meu quarto. De qualquer forma, aprendi a dizer-me a mim mesmo em sonho que “Espera, isto é bem capaz de ser um sonho” e abrir os olhos para ver o tecto do meu quarto, para sentir a cama debaixo de mim, o edredão por cima, e sentir a tensão aliviar outra vez até aos níveis normais. Kainever, o que é que estás a fazer? Após quatro horas disto o normal é não conseguir dormir mais. Sei-o quando acordo, imediatamente, que me esperam horas a rebolar na cama a perguntar ao ar porque raio é que não adormeço. Porque quando se acorda a meio da noite, se é para voltar a dormir, é em meio minuto – nunca realmente se acorda e muitas vezes é um companheiro que nos diz “Não te lembras de acordar a meio da noite? Até falaste comigo” e maior parte das vezes não nos lembramos. Mas eu acordo com uma tonelada de consciência largada em cima da cabeça, uma tonelada de alerta e já está, olho para o relógio e sinto-me imediatamente demasiado eu, demasiado real, para voltar a dormir. Um dia uma amiga disse-me que durante todo o dia, a qualquer hora, conseguia manter três níveis de pensamento constantes e sem problema, que pensava em três coisas ao mesmo tempo. Três camadas. Também me disse recentemente, quando numa despedida online lhe desejei que dormisse bem, que “durmo sempre bem”. Pois eu, que concentro todo o meu pensamento numa camada só, chegando estes momentos em que quero voltar a adormecer, dou por mim a pensar em dormir, a pensar em escrever, a entoar repetidamente uma canção qualquer, tudo ao mesmo tempo e, como os escritores dizem sempre, a uma velocidade “vertiginosa” – lamento, não estou para procurar palavras neste momento, não às seis e quarenta e cinco da manhã quando o meu corpo parece que ainda dorme mas eu não. Obrigado Kainever.