Sonhei nas últimas
duas noites que estava com pessoas que não vejo há dez ou mais anos.
Conhecimentos dos meus tempos da escola secundária com quem naturalmente perdi
contacto, mas com quem vivi momentos (com alguns mais momentos do que com
outros) entre o agradável e honestamente bons. Os sonhos tomam lugar nesses
dias de há uma década atrás, as pessoas estão iguais e somos todos os miúdos
que éramos. Mas falamos como falaríamos agora, desaparecidos e desligados uns
dos outros pela mudança dos tempos e dos lugares. Dizemos coisas como “Há
quanto tempo!” e trocamos apertos de mão e abraços sentidos. Despedimo-nos com
sorrisos na cara como quem gostou do encontro, como quem ainda se lembra dos
tais momentos bons vividos em conjunto, tenham sido eles poucos ou muitos.
Há duas noites
sonhei com uma grande amiga minha cuja proximidade que povoou os nossos dias na
escola secundária me ficou para sempre na memória. Chamemos-lhe S. Por via de
amigos que tenho em Portugal, tinha espreitado já o perfil dela na rede social
da moda. E quanto ela estava diferente… inacreditavelmente diferente, sem
entrar em detalhes. Levei a mão à minha boca aberta, o meu queixo caído de
incredulidade, e exclamei uns “Oh meu Deus”, blasfémias contra o meu ateísmo –
isto era o quanto ela estava diferente. Não de uma maneira má, não por se ter
tornado outra coisa, apenas fisicamente diferente. Não queria acreditar que era
a mesma miúda envergonhada e inteligente que conheci nos últimos anos da minha
adolescência.
Continuámos a
navegar o perfil dela. Fotografias de férias felizes, fotografias em família
que emitiam amor e carinho, e um álbum inteiro dedicado ao filho. Um filho… S.
com um filho que sei agora que foi “fruto de uma relação anterior” (nas
palavras dela). Apesar de tudo, achei-a feliz e senti-me feliz por ela. Muito
feliz, por saber que enquanto a minha vida interior deu as curvas que deu e se
afundou o quanto se afundou, pelo menos uma das pessoas de quem mantenho uma
memória clara de grande amizade e confiança partiu para uma vida que talvez
tenha tido os seus momentos baixos, mas no gráfico geral desta década a média
parecia claramente positiva. Quis escrever-lhe. Eu e os meus amigos estávamos levemente
afectados por algumas substâncias que tínhamos levado para a praia nessa noite,
e não sendo eles estranhos à afeição que tive (e tenho) por esta pessoa,
confiei-lhes que gostava de lhe dizer sem qualquer compromisso que estava feliz
por ela. Que após uma década, vê-la feliz fez-me suspirar de alívio.
Tudo isto se passou
em Dezembro. Mantive esta ideia de que lhe devia escrever, ideia que voltou a
saltar na minha mente aqui e ali nos meses que se passaram. E há duas noites
sonhei que estávamos outra vez no secundário, e o sorriso dela estava igual.
Igualmente envergonhado, reservado, mas como quem guarda alguma coisa por
dentro que vale a pena trabalhar para conhecer. De onde veio esta memória tão
clara desta pessoa confesso não saber. Esquece-se muita gente ao longo de uma
década e as caras, ainda mais as expressões, tornam-se difusas. Mas esta era
uma memória clara como um desenho de traço fino, seguro e detalhado. Decidi
escrever-lhe. Pela rede social da moda, claro, não tendo outra maneira de a
contactar. Disse-lhe aquilo que lhe disse aqui: que fiquei contente com o que vi,
com a felicidade que parecia ter encontrado. Que me esqueci de muitas pessoas
mas a memória dela era clara, e que a sua felicidade de algum modo era
importante para mim apesar da década que podia ter erodido a sua significância.
Recebi uma resposta
no dia seguinte. Não interessa para onde isto vai agora. Se vamos comunicar
frequentemente ou não, ou se um dia nos encontramos para histórias contadas por
cima de um café ou qualquer coisa. É-me indiferente. Quis dizer-lhe que fiquei
feliz por ela e tive essa oportunidade, e espero honestamente que seja feliz na
próxima década também, e daí em diante. Será, portanto, que foi por mim que a
contactei? Não consigo evitar a questão (porque temo sempre que me projecte em
tudo o que faço) mas não sei se interessa. O sentimento por detrás da primeira
mensagem, esse pelo menos era genuíno.
No segundo sonho,
que tive nesta noite que passou, do qual acordei às cinco e meia da manhã sem
conseguir retomar o sono, estava na piscina municipal que fica imediatamente ao
lado da minha escola secundária. Penso que tinha ido buscar a minha irmã mais
nova que lá praticou durante muitos anos da sua infância. A primeira pessoa que
encontrei, chamemos-lhe J. era também uma amiga cuja relação de confiança era
algo desequilibrada, no sentido em que ela confiava muito em mim e eu não
confiava realmente nela. Mas neste cenário, na pequena vila de há dez anos
atrás, trocámos Olás entusiastas e tivemos a conversa típica de quem não se vê
há imenso tempo. Demos as mãos num acto de despedida e dei por mim a não querer
largar à medida que ela se afastava de mim em passos lentos, andando já de lado
a meio de virar finalmente as costas. Dei por mim a sentir aqueles últimos
momentos em que ainda tinha a mão dela na minha, depois só os dedos, as pontas
dos dedos, até não ter nada e o meu braço estar ainda esticado agarrando o nada
na esperança de estender no tempo aquele conforto sensorial da mão do outro.
Fora do complexo
das piscinas encontro outra cara desses tempos abandonados. Chamemos-lhe P. Um
tipo sempre bem-disposto. Quis perguntar-lhe se ainda tocava naquela banda de
percussão mas não tive tempo, a nossa troca de questões e respostas era
animada, entusiasmada, acelerada. Disse-lhe que vivia no estrangeiro agora e
ele disse-me que um dia me viria visitar. Respondi que viesse, que viesse
mesmo, que o hospedaria, que tinha casa para ele, que teríamos que partilhar o
quarto mas tenho dois colchões, podemos por um em cima do outro quando
acordamos e não há problema de espaço. Confirmei-lhe que viesse, que viesse
mesmo. Despedimo-nos.
Acordei, cinco e
trinta e cinco da manhã, mas o meu relógio tem uns minutos a mais para me dar a
ilusão que vou chegar aos sítios com antecedência. A luz já tinha acabado de se
instalar lá fora e decidi começar o dia, bem-disposto pelas horas que não perdi
acordando tardíssimo. Hoje tenho aqui já mais de mil palavras, mas não sei como
categoriza-las. Estou a escrever sobre escrever? Não. Estou a escrever sobre
depressão? Sobre melhorar? Talvez. Estou a escrever sobre saudade, sobre
nostalgia e estar ligado a memórias de tempos em que não estava tão só, tempos
em que as pessoas me rodeavam e estava no meio de uma rede de ligações e
afectos. Estou a escrever, talvez não sobre melhorar, mas sobre uma maneira de
estar melhor.