Exercício
de escrever, porque sim (no qual não tenho tema para escrever mas escrevo na
mesma): #1
Esta chuva fina que parece fazer parte do ar. É
daqui, esta chuva, é este sítio e as memórias que dele tenho. Pisos molhados e
casas repetidas na forma e nas paredes húmidas.
Este momento, agora, é de um domingo cedo e
fresco, madrugada. Emborco cafeína de todas as formas a que tenho acesso –
bebidas energéticas, um café (para já só um). Paro e olho para todas as montras
por onde passo. Lojas de antiguidades, interesso-me pelo que vendem. Take away indiano, paro e observo os
preços como se alguma vez lá fosse buscar comida. Um cabeleireiro, onde sei
agora o preço de um corte para mulher. Tudo fechado, ainda. A cidade ainda não é.
Não nestas horas azuis, cedíssimas, de um domingo. Aos poucos a cidade vai
despejar-se pelas estradas – os carros pelos veios principais e as pessoas
pelas ruas apertadas da baixa. Aos poucos tudo se vai brotando para as ruas,
das portas, certamente, mas parecendo que surgem de lado nenhum. De um fim de
uma rua longa que se perde numa neblina distante de onde as pessoas nascem e
caminham em direcção a mim, passam por mim em direcção ao infinito onde se
desfazem outra vez no meu esquecimento.
As lojas que cá deixo. Ode sempre quis comprar
isto e aquilo, coisas para um futuro que é só da boca para fora, um futuro em
que a minha vida é melhor. Mentiras que a minha mente às vezes consegue
pregar-me. Mas as lojas que cá deixo, as coisas que sempre um dia ainda havia
de comprar. As coisas que cá deixo. A diversidade que um dia foi nova, que se
amplia agora mais uma vez, agora que deixo para trás todas as pequenas coisas
giras que nunca comprei. Quero correr todas as lojas da baixa e comprar tudo o
que quiser. Levar comigo as coisas engraçadas daqui, as coisas que um dia me
imaginei usar com gargalhadas. Quero abusar do meu cartão, passa-lo de mão em
mão em cada loja que só tenho aqui, para levar comigo para todo o lado o que
esta cidade é. Vou ter saudades. Ainda hei-de chorar esta cidade, deixá-la para
trás como ver alguém que se vai tornando cada vez mais pequeno com a distância,
e como todos os alguéns que um dia deixei para trás – permanente ou
temporariamente, mas sempre com a dor da saudade que chega antecipada – não me
vou saber despedir. Ainda hei-de sair daqui com esta cidade tatuada na memória,
arrependido por não a levar comigo nas milhentas coisas que nunca comprei.
Tenho fotografias que cheguem para vestir
qualquer parede, mas parece que estou destinado à nudez dos quartos. E invejo
todos aqueles que se imprimem nos sítios e os tomam e os mudam, submetem-nos a
quem são e ao facto de ali estarem. Impõem-se nas paredes e nos móveis como
quem se anuncia com um forte “Estou aqui. És meu”. Porque eu vivo sempre num
submundo, mergulhado num livro ou num computador, numa realidade que não é real
– filosofia à parte por um momento, que quero acabar isto hoje – e os quartos e
os sítios nunca são meus porque nunca lá estou. E o quarto que aqui deixo é
mais um no qual não me expandi até lhe alargar as paredes para me acomodar, até
o deformar para que quem entre saiba que algures eu existo, realmente existo,
nesta realidade que é realmente real (não quero saber se a aliteração é foleira
ou não). Afinal, seguindo os vestígios que deixei nos meus quartos desta
cidade, ou as marcas ou provas de mim mesmo, quase não se retira a conclusão de
que realmente aqui existi.
Vou chorar esta cidade, quando a memória dela me
apanhar um dia com a guarda em baixo e desprevenido, mas esta cidade não vai
chorar por mim. Vou dizer-lhe “Adeus” e ela vai responder-me “Está bem”. Vou
dizer-lhe “Vou lembrar-me de ti, ter saudades, olhar para fotografias tuas e
sentir uma coisa cá dentro, um aperto estranho no abdómen e um peso nos ombros”
e a cidade vai responder-me “Ok”. Um dia vou apanhar um comboio que será o
último, e verei a cidade encolher até ao início de eu nunca mais a ver. A partir
desse momento fica o medo constante das memórias se esborratarem, se confundirem
e descolorarem, a ansiedade de saber que a cada dia que passa o tempo me rouba
estas imagens que hoje quero guardar para sempre. “Pára, tempo! Pára! Pára!”
quero gritar e implorar. Pedir-lhe que por favor não me apague as memórias
desta cidade. Mas uma vez apagadas já nem saberei pelo que estou a lutar. Nem
saberei que o tempo está a roubar-me parágrafos inteiros da prosa que é o meu
passado. Nunca houve maior vilão que o tempo – o seu silêncio furtivo,
infabilidade, implacabilidade, derrotando-nos todos os dias, como um inimigo
perfeito.
Vou ter saudades desta cidade. Tenho-lhe as
feições bem fotografadas. Vou olhá-las de tempos a tempos e deixar que me
impactem e me perturbem.