Thursday, January 5, 2012

No dia em que escrevi o primeiro capítulo do livro em que estou a trabalhar, para me despejar, porque estava inundado, escrevi o seguinte:


Eu escrevo. Sento-me e as minhas mãos estão o mais próximo possível do teclado sem o tocar, flutuando um pouco, como um primeiro beijo. Estou parado, músculos até um pouco tensos, se tempo e movimento são a mesma coisa então é como se tivesse parado o tempo, olhos fixos na página virtual. É um deserto, para atravessar contra o vento. É uma batalha, escrever, e uma floresta densa por perfurar, um rio no qual remar contra a corrente. Estou imóvel bombeando electricidade para a frente e para trás através da minha rede neuronal, trabalho silencioso, sob a aparência de um autómato desligado. Mas a erupção é instantânea e sem tremores que a antecedam, é um estalo ensurdecedor, uma faca vinda não sei de onde que viola o lençol de silêncio, uma agulha e um balão; dispara o meu cérebro a ordem e os meus dedos caiem sobre as teclas, é um ataque, é um massacre. As palavras aparecem sob o som ininterrupto das teclas a morrerem em combate, a página é a praia onde o sangue fica e escorre com a água e se escreve história. Erupção a erupção, sempre rápidas e urgentes, assim o texto se forma, uma serpente de palavras invocadas de outra dimensão e fixadas à força na nossa realidade, avançando, vertendo-se sobre as páginas.
Eu escrevo. Uma história desta vez, com capítulos e personagens e coisas que acontecem, e tudo. Espalha-se em palavras aos milhares, e deita-se ao longo dos dias e das semanas. Dá-me medo, o medo da responsabilidade, que vem com o poder, e escrever é um poder imenso. Vejo na distância o fim de um capítulo, vou acrescentando palavras e depositando a história organizadamente ao longo das linhas à medida que esse fim ganha forma. Sei o que tem que vir antes que ele chegue, sei o que tenho que deixar para depois. Quero uma frase que encerre o capítulo, que ressoe na mente quando a página estiver só meia preenchida e a página seguinte terá um título, um convite a respirar, a engolir o que entretanto foi ingerido. Vejo-o aproximar-se como alguém caminhando numa estrada, o calor ondulando a realidade, e sei que o encontro é inevitável. Fim de capítulo, convite a uma pausa, estancar o fluxo, virar as costas, completude da produção, um artefacto completo. Empurro a história até onde o fim de capítulo possa aterrar pacificamente, a última frase, a que ecoa no leitor enquanto ele vira a página para a secção seguinte, surge naturalmente e apresenta-se-me, eu aprovo. Ponto final. Capítulo encerrado. Satisfatório.

Mãos afastam-se do teclado. Estou nervoso, coração acelerado, desactivei uma bomba no último segundo e a adrenalina ainda está perdida nas minhas veias. O capítulo que encerro é agora um artefacto complexo de vidro, é frágil e tenho medo de o deixar cair. Tenho medo de deixar as mãos flutuar sobre o teclado uma vez mais, tão próximas das teclas que sinto o calor da maquinaria onde escrevo; tenho acima de tudo medo de acrescentar uma palavra que seja. Está feito. Viro as costas, concedo-me o tempo para desperdiçar em qualquer outra coisa, sinto-me bem. Atrás de mim o capítulo ainda transpira. A serpente de palavras é um demónio. Espero que tudo arrefeça e se silencie, e assim se torne o que é. O capítulo fixando-se na realidade – está encerrado, está escrito. Mas até lá sinto a sua presença, um murmúrio, “capítulo, capítulo, capítulo”, pergunto-me se conseguirei adormecer de todo hoje. O quarto, ou eu próprio, um de nós está assombrado agora.

Hoje terminei o quinto capítulo. Sinto exactamente o mesmo.

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